4 A ajuda múltipla e o valor social

Versão 2.0.0 - 07/01/202428

Procurando resolver um problema prático, este texto sistematiza uma forma de promover a ajuda múltipla através de acordos sucessivos e virais. Para auxiliar na sua compreensão, é definida uma forma de cálculo do valor social e suas consequências são avaliadas.

4.1 Motivação

Em geral, quando ajudamos alguém (principalmente quando ensinamos algo), não há muita garantia que a pessoa ajudada passará a idéia pra frente, seja ajudando outrem ou passando o conhecimento adiante. Mesmo em coletivos horizontais, não-hierárquicos e baseados na ajuda mútua, não há necessariamente uma cultura de passar para frente a ajuda recebida. Por isso, estabelecemos neste texto uma sugestão de acordos de ajuda múltipla tanto como proposta de prática e sobretudo como reflexão da distância que os grupos sociais se encontram com relação a um regime de dádiva e não-escassez.

4.2 O acordo de ajuda múltipla

Para fomentar o aumento da ajuda entre as pessoas, criaremos o conceito de ajuda múltipla e proporemos um pequeno acordo padrão para o seu estabelecimento. Pois bem: ajuda múltipla é a forma de colaboração onde uma ou mais pessoas – grupo A – auxiliam outras – grupo B – com a condição de que estas últimas efetuem ajuda múltipla auxiliando outras pessoas – grupo C. Atente para o fato de que definição é recursiva (isto é, a definição necessita de sua própria definição): uma ajuda múltipla seria, por exemplo, Maria ajudar Lopes com a condição de que este ajude alguém no futuro. Note que o grupo C pode ser composto pelas mesmas pessoas do grupo A, mas não necessariamente: Lopes deve ajudar alguém, mas não necessariamente Maria29.

4.2.1 Viralidade (ou potência) do acordo

Estamos interessados/as na possibilidade da multiplicação da ajuda e, para tanto, devemos melhorar nossa definição de ajuda múltipla: ajuda múltipla é a forma de colaboração onde uma ou mais pessoas – grupo A – auxiliam outras – grupo B – com a condição de que estas últimas efetuem pelo menos v ajudas múltiplas (onde v é um número inteiro positivo) auxiliando outras pessoas – grupo C, D, E, etc – com a condição de que as próximas pessoas também pratiquem ajuda múltipla e assim por diante.

Nesta segunda definição, introduzimos o que chamaremos de viralidade: não apenas a pessoa ajudada precisa participar de pelo menos mais v acordos de ajuda como as pessoas ajudadas por esses próximos v acordos precisam, após serem ajudadas, participarem como ajudantes em pelo menos mais v acordos30.

A idéia principal da viralidade é que ela representa o custo social de uma ajuda: se recebo uma ajuda, devo retribuir não exatamente a quem me ajuda mas a todo o grupo social, participando como ajudante em pelo menos v outros acordos.

Por isso, os acordos não devem ser entendidos como moedas de troca: a moeda abstrai e aliena as relações sociais – já que pode ser trocada – enquanto que o acordo reforça e encoraja relações sociais. A moeda conserva valor (uma vez que ela é criada, basta que circule)31. Os acordos, ao contrário, geram valor o tempo todo por causa de sua viralidade. Eles criam valor social sem precisarem ser trocados, já que eles se reproduzem. Assim, devem ser entendidos mais na lógica da dádiva do que do contrato social.

4.2.2 Modelo de acordo viral

Na prática, convém termos um modelo de acordo para facilitar o dia-a-dia: pessoas nos pedem ajuda e em geral precisamos dar uma resposta rápida. Um modelo de acordo – onde o/a proponente pode ser qualquer uma das partes envolvidas e os acordos podem ser de múltiplas partes – deve ser simples e eficaz e por isso o texto do modelo de acordo abaixo serve para criar pequenos acordos entre pessoas:

Acordo de ajuda múltipla

O/a proponente/a deste acordo tem como objetivo multiplicar seus esforços de ajuda. Para tal, é utilizado o princípio da reprodução viral de atividades culturais.

Neste acordo, as pessoas ajudantes concordam a ajudar as pessoas, doravante denominadas como ajudadas, desde que as ajudadas concordem em participar como ajudantes em pelo menos X próximos acordos deste mesmo tipo (nos quais, por sua vez, as pessoas ajudadas deverão participar como ajudantes em pelo menos X acordos deste mesmo tipo e assim sucessivamente).

A contrapartida não precisa ser necessariamente no mesmo teor da ajuda prestada.

Esse modelo de acordo não pretende apenas incentivar a iniciativa e o protagonismo como também encorajar quem não ajuda ou não pede ajuda por conta de algum receio. Não podemos também deixar de mencionar que estes tipos de acordo só fazem sentido e apenas serão necessários enquanto a ajuda mútua/múltipla não for uma prática cultural comum e generalizada, quando então a prática descartará a necessidade de microacordos.

O modelo acima é apenas uma sugestão: muitos outros podem ser feitos e inclusive é possível ainda tornar tais acordos acopláveis em licenças de manipulação de conteúdo. Desde que os acordos funcionem para criarem valor no grupo social, tão melhor. Sugestões de melhoria desse modelo seriam abrir margem para uma melhor definição de contrapartidas e estipular um prazo para que o acordo seja cumprido. Sugerimos que ao menos a simplicidade, a clareza e o tamanho reduzido do acordo sejam preservados.

4.3 O valor social

Como se comportaria um grupo social onde tal prática de acordos se iniciasse ou fosse já endêmica? Para nos auxiliar nesta e noutras perguntas, podemos recorrer a um mínimo de sistematização. Considerando um grupo social de m pessoas, podemos definir a função valor social como sendo

\[\begin{equation} S = \displaystyle\sum_{p=1}^{m}\frac{\left(p\ n_p\right)^{v}}{mr} \tag{4.1} \end{equation}\]

onde \(n_p\) é a quantidade de acordos existentes envolvendo \(p\) pessoas32, cada acordo com viralidade33 \(v\) e \(r < m\) é o número de pessoas que poderiam34 ter efetuado acordos mas que ficaram de fora (isto é, não fizeram acordo nenhum). O valor social assim definido exibe uma série de propriedades interessantes sob o ponto de vista das interações sociais, que pode ser revelado pela simples análise das componentes da somatória.

Primeiramente, esse valor é uma propriedade do sistema social como um todo e não de um ou outro indivíduo. Em segundo lugar, quanto mais acordos envolvendo múltiplas partes, maior será o valor social: muitos acordos entre poucas partes podem ter um peso menor do que poucos acordos entre múltiplas partes. Um grupo social com muitos acordos de múltiplas partes possui maior ação coletiva35 (maior participação coletiva, maior coletividade) do que uma sociedade com acordos entre apenas poucas partes.

Já a quantidade \(m\) de pessoas do grupo e o total \(r\) de pessoas que não participaram de nenhum tipo de acordo contribuem na diminuição do valor social: se poucas pessoas (em relação ao total \(m\)) fazem acordo, temos uma sociedade com pouca ajuda múltipla e, portanto, para que \(S\) atinja valores significativos, é preciso que \(m\) se torne quantitativamente menor em relação aos valores dos componentes \(\left(p\ n_p\right)^{v}\). O mesmo vale para \(r\): os componentes devem ser mais significativos do que a quantidade de pessoas que poderiam estar em acordos mas que ficaram de fora, ou seja, \(S\) leva em conta a inclusão ou exclusão social da ação coletiva36.

Por fim, a viralidade potencializa a multiplicação de acordos: quanto maior for a viralidade, maior é o valor dos acordos, pois cada acordo é um acordo de ajuda futura e portanto de investimento na potencialidade das ações coletivas.

Poderíamos ter definido um valor social de outra forma, mas sabemos que não há definição de valor que não haja um propósito e muito menos há uma definição sob a qual todas as outras se reduzem: o valor é uma propriedade definida pelo grupo social e deve servir a este: devemos buscar definições e convenções de valor (ou também suas indefinições) que nos sirvam. Não só acreditamos que esta teoria do valor sirva para mostrar como a ajuda múltipla implica numa maior ação coletiva como ainda exibe propriedades interessantíssimas do ponto de vista de sistemas dinâmicos.

Por simplificação, podemos reescrever a equação anterior como

\[\begin{equation} S = k\displaystyle\sum_{p=1}^{m}\left(p\ n_p\right)^{v} \tag{4.2} \end{equation}\]

onde \(k = \frac{1}{mr}\). O valor de \(k\) pode mudar num dado grupo social – por exemplo: mais pessoas ingressando ou saindo do grupo ou então com um aumento ou diminuição de protagonistas de acordos – mas podemos considerá-lo como constante num dado momemto, ou seja, \(k = k(t)\) e independente de outras variáveis.

O que realmente nos interessa agora, no entanto, é que chega um momento em que o grupo social está com tantos acordos que, da forma como definimos na Equação (4.2), \(S\) começa a crescer absurdamente e já não passa a representar o valor efetivo de um corpo social onde a ajuda múltipla se faz presente. Em outras palavras: chega um momento em que as pessoas já estão tão endividadas de acordos a cumprir que mais dívidas não afetarão consideravelmente no seu comportamento de ajuda múltipla. Para refrear o crescimento indiscriminado de \(S\), redefiniremos nossa função como

\[\begin{equation} S = k\ ln\displaystyle\sum_{p=1}^{m}\left(p\ n_p\right)^{v} \tag{4.3} \end{equation}\]

onde ln cumpre um amortecimento no crescimento da somatória, mostrando que o valor efetivo do grupo cresce logaritmicamente: temos um rápido crescimento do valor conforme os acordos se iniciam e se multiplicam e, conforme o endividamento social cresce, a sociedade atinge patamares de valor altos demais para que um maior acréscimo se torne significativo.

Temos que, pela própria definição, \(S\) é uma função de estado, uma vez que, definido um grupo social e suas interações a partir das variáveis \(n\), \(m\), \(v\), \(r\), etc, temos que \(S\) é um indicativo do estado do sistema – indicando, por exemplo, se ele possui mais ou menos acordos (e qual a potência e alcance dos acordos) do que outro grupo social igualmente caracterizado. Além disso, obedece a

\[\begin{equation} \frac{dS}{dt} \geq 0 \tag{4.4} \end{equation}\]

Portanto, chamaremos nossa última definição de \(S\) (Equação (4.3)) como entropia econômica do grupo social. Tal entropia mede, inicialmente, o grau de endividamento do corpo social. O endividamento é então a única forma de acúmulo possível: uma vez que alguém ajuda outrem, não é essa pessoa que detém um crédito: muito pelo contrário, as pessoas ajudadas contraem uma dívida com todo o corpo social, já que os acordos estipulam que a pessoa ajudada deve ajudar qualquer outra pessoa e não necessariamente quem a ajudou.

A entropia tem sido fonte de controversias e mal-entendidos quanto à sua interpretação. Pela nossa definição, temos que uma entropia maior se deve exclusivamente a um aumento da complexidade do sistema social, complexidade que medimos utilizando um conjunto de variáveis que consideramos como características do sistema37 que de algum modo representam o seu estado. Aqui, utilizamos número de acordos, viralidade dos acordos, etc, o que caracteriza uma abordagem de granulação grosseira, ou seja, de baixa resolução. Um cálculo de valor com maior resolução deveria levar em consideração, por exemplo, os acordos separadamente ao invés de agrupá-los por partes envolvidas.

4.4 Descontrole social

Esta se torna então uma teoria do descontrole social: o aumento da entropia é, aqui, não só benéfica como desejável, já que ela indica um aumento do número de interações. Se nas teorias do controle a entropia tem um aumento indesejável, aqui se torna o comportamento almejado.

Sendo os acordos diretos, isto é, não mediados, temos ainda mais descontrole: é importantíssimo que tais acordos não sejam mediados por bancos de dados. Por banco de dados entendemos qualquer iniciativa de tentar efetivamente calcular \(S\) para um dado grupo social (e não o registro pessoal que cada indivíduo mantiver a respeito dos acordos que participou). A mera existência de um banco de dados centralizado capaz de calcular a cada instante o valor social tem os seguintes riscos:

  • Dá margens para o estabelecimento de controles sociais com a identificação das pessoas mais protagonistas (que participam de mais acordos), das pessoas mais prestativas (as que mais ajudam), as que mais são ajudadas e as que menos contribuem com ações coletivas, possibilitando assim represálias, etc.

  • Se, por um lado, o banco de dados “facilita” a busca de pessoas que querem ajuda e que podem ajudar, por outro diminuem a necessidade das pessoas de travarem contato pessoal para iniciarem seus acordos, já que o banco de dados detecta e aproxima as pessoas automaticamente.

  • Acredita-se que seja de interesse do grupo social que a prática da ajuda múltipla faça parte da sua cultura e não uma dependência do banco de dados (o que seria um culto ao banco de dados).

É com esse sentido de oposição aos bancos de dados que estabelecemos o conceito de valor social: não nos interessa calcular efetivamente o valor de \(S\) para um dado grupo social e muito menos caracterizar cada grupo em função desses parâmetros, o que além de policialesco não representa o real valor social do grupo (afinal, nem discutimos as diferenças qualitativas de cada acordo). Queremos, ao contrário, mostrar como se comporta um grupo social adepto de acordos virais de ajuda múltipla. Podemos resumir isso com a seguinte expressão: criamos um cálculo para auxiliar na compreensão o valor social mas jamais queremos que ele seja usado para quaintificá-lo, mesmo porque muitos valores escapam da fórmula que estabelecemos. Não necessitamos de um banco porque, na ajuda múltipla, o sistema bancário já emerge do próprio tecido social.

4.5 Estados enquanto bancos distribuídos

A ajuda múltipla pode oferecer um tremendo insight da inversão da dívida em dádiva.

Neste modelo, o Estado poderia ser entendido basicamente como uma função recursiva e um cálculo de valor da aplicação desta função de entropia social, isto é, o Estado é constituído por pessoas que recursivamente proporcionam o espalhamento de solidariedade juntamente com uma estimativa do grau de solidariedade (“solidez”, mas no sentido fluido) desta sociedade.

A ajuda múltipla seria capaz de detonar com o sistema bancário clássico – e o “banco” estaria pulverizado na miríade acordos.

É aqui que talvez estejam as principais objeções dos economistas:

  1. A moeda serviria como alocação de trabalho, desde os exemplos clássicos de trocar o que se produz por moeda e em seguida trocá-la pelo que precisa.
  2. E o Estado, na leitura liberal, seria o “garantidor dos contratos” firmados, seria um árbitro para garantir que dívidas sejam quitadas e que a moeda tenha valor enquanto garantia de troca; necessitando para isso arrecadar impostos, taxas e tarifas, que nada mais são do que tipos de dívidas automaticamente contraídas para com o Estado.

No fundo, o entendimento (neo)liberal é baseado num pressuposto de que as pessoas são “naturalmente” más e mesquinhas, e portanto o sistema econômico deve ser punitivo. Mas esta leitura inverte os termos em sua produção de realidade38: é a sobrevivência forçada num sistema punitivo de dívida financeira que empurra as pessoas a adotarem comportamentos “mesquinhos” e “maus”. Não é difícil agir generosamente com as pessoas para que se sintam respeitadas e retibuam a gentileza, ou ajudem outras pessoas.

Ou seja, o sistema punitivo só funciona se houve gente endividada. Tomemos de exemplo o contrato hobbesiano - o que é aquilo senão a aquisição de uma dívida perpétua, irrevogável e contraída por coação devido a uma profecida autorrealizada de um “Estado Natural” de todos contra todos que é trocada por um “Estado Soberano” de todos contra todos39?

Uma sociedade sem esse tipo de Estado punitivo teria de operar mediante outras garantias de “quitação de dívida” – dentro da lógica da dádiva e da generosidade, o que pode nos parecer absurdo dado o mundo em que vivemos, no qual é mais “racional” e “objetivo” se beneficiar de acordos de ajuda mas não ajudar ninguém; ou no qual as pessoas estão tão afundadas nas dívidas clássicas que desistem de fazer qualquer pagamento.

4.6 Logística

A ajuda múltipla resolveria o problema da dívida enquanto trabalho forçado e punição.

Mas o que dizer do problema logístico da alocação de ajuda? Como vou saber quem pode me ajudar, e como posso descobrir quem posso ajudar?

Ou seja, para um sistema de ajuda múltipla ser efetivo, seriam necessários sistemas do tipo “mural”, onde pedidos de ajuda são afixados… e isto seria uma espécie de “banco” – lugar onde se trocam mensagens sobre ajuda… onde poderia encontrar um praticantes da medicina que me ajude e depois encontrar alguém que precise de minhas habilidades, por exemplo.

Estes murais seriam uma Máquina de Estado… comporiam um Estado em constante (re-)constituição, até eventualmente compatíveis com uma noção de federalismo do tipo “anarco-estatista”40.

Estes murais comporiam bases de dados descentralizadas, ou mesmo distrbuídas, de pedidos de ajuda. No entanto, seria fundamental que tais mecanismos de troca de mensagens não contivessem informação sobre a dívida de ninguém. Quando um pedido de ajuda é atendido (ou expira), o mesmo poderia simplesmente desaparecer, não deixando rastros do que ocorreu, nem indicando quem ajudou e a dívida social “contraída”. Muito menos conter um sistema de “reputação”, classificando pessoas entre “boas” e “más” pagadoras, que “honram” ou não acordos. Caso contrário, um Estado punitivo teria condições básicas para existir.

Repetindo: não poderia haver uma base de dados de dívidas. A consequência é que a função Estado baseada no valor social seria incalculável, por falta de dados! E que assim seja!

4.7 Escalabilidade

Entendo a ressalva sobre uso das matemáticas pra “modelar” sociedades – modelar nos dois sentidos, de criar modelos pra entender a sociedade ou querer enquadrar a sociedade num modelo artificial. A economia hegemônica tem grande proeminência ao modelar a sociedade, mas a troco de uma tremenda perda de variedade, diversidade e diferença. A matemática empregada opera uma perda da identidade – indivíduos são apenas números, elementos de conjuntos etc – e com muita simplificação.

Por outro lado, temos problemas de larga escala que a meu ver a só conseguiremos resolver sem muito desperdício e exaustão dos recursos do planeta, caso matemática e planificação adequadas sejam empregadas.

Poderíamos fazer outros exercícios, como modelar a quantidade de casas que poderiam ser construídas dependendo dos parâmetros de ajuda múltipla médios numa sociedade; e até expandir o conceito de ajuda múltipla pra coletivos/agrupamentos humanos – famílias e povoamentos que se ajudam, federações que se ajudam e assim por diante, pensando na convergência de movimentos sociais em diversas escalas e escopos.

4.8 Riscos

É importante ir além de um idealismo crente de que seja necessário apenas criar as “plataformas” e os “protocolos” que avançaríamos estruturalmente na resolução do problema, passo a passo, incluindo cada vez mais gente nas redes de ajuda, apoio e solidariedade.

A implementação da ajuda múltipla não vem sem os seus riscos, oriundos do mero fato de ocorrer dentro de um mundo de concorrências entre pessoas e punições generalizadas.

O primeiro risco a se considerar é interno: a ajuda múltipla poderia degenerar num esquema pirâmide, emergindo a partir de assimetrias sociais – nas quais algumas pessoas poderiam fornecer mais ajuda inicial.

Vale ressaltar que a mecânica do esquema pirâmide jamais resolve os problemas de distribuição de recursos numa sociedade. Ela apenas os mascara.

O início de um esquema pirâmide é promissor: cada vez mais pessoas são incluídas – evidentemente quem está dentro se beneficia às custas das que acabam de entrar. Há a impressão de que todo mundo vai crescer, quando na verdade ocorre apenas a criação de uma nova pirâmide dentro da pirâmdide social pré-existente numa sociedade desigual.

Se o esquema pirâmide continuasse e toda a sociedade fosse incluída, a pirâmide do esquema basicamente substituiria a pirâmide social pré-existente na sociedade, requerendo um novo esquema pirâmide, ou seja, uma nova rodada do esquema pirâmide para criar a ilusão de inclusão.

Mas os esquemas pirâmides tendem a quebrar antes que isso ocorra, chegando num limite de crescimento.

A “estratégia de saída” do “investidor” que chega no esquema pirâmide consiste unicamente em achar mais pessoas para entrarem na pirâmide, abaixo dele, caso contrário terá prejuízo. Os últimos que chegam no esquema acabam se ferrando.

A conquista de direitos sociais mediante reformas aristocráticas com verniz democrático tem um quê de esquema pirâmide.

A ajuda múltipla oferece uma espécie de “imunidade” implícita contra esquemas pirâmides, pelo fato de que a dívida contraída por ajuda múltipla não se dá entre quem ajudou e quem foi ajudado, e sim entre quem foi ajudado e o resto da sociedade. Assim, qualquer iniciativa de “recrutamento” de pessoas para dentro de um “esquema” não favorece quem recrutou, e sim toda sociedade, inclusive pessoas que ainda não fazem parte da rede de apoio.

Outro risco, a ser avaliado, é externo: a captura, a ilegalidade, a poluição ou a irrelevância.

As ideias são capturadas, ou destruídas… movimentos sociais estão na linha de frente na tentativa de resolver problemas da vida prática pelo caminho da solidariedade.

Mas aí vem o capitalismo e aplica sua racionalidade unidimensional, impondo um choque de “eficiência” que varre do mapa muitas dessas iniciativas, apropriando-se das suas “inovações”41, o que já foi tratado por Saravá (2008).

A tarefa de “inovar” tem sido sempre impossível e ao mesmo tempo inescapável. Mesmo sabendo que, se uma prática começa a dar certo e não puder ser apropriada, ela será tornada ilegal e perseguida.

Seria a ajuda múltipla também imune a estes riscos externos? Acredito que parcialmente:

  • A ajuda múltipla não gera um valor monetário, isto é, ela não é “monetizável”. Me parece muito difícil se “apropriar” dessa “inovação” social sem que ela perca seu caráter inovador, isto é, sem que seja deturpada.

  • Sem querer dar ideias para o “outro lado” credor-punitivista, mas já expondo os perigos da deturpação da ajuda múltipla, “empreendedores” capitalistas poderiam – se é que já não fazem – criar “plataformas” de “inclusão” em sistemas de auxílio nos moldes do que hoje é chamado de “microtrabalho” ou “microtarefas”. Ou seja, mesmo que a ajuda múltipla em si mesma não possa ser apropriada sem perder seu caráter de ajuda múltipla, ela pode ser deturpada e enfrentará sistemas concorrentes operando dentro da lógica da dívida-punição42.

  • Pode parecer difícil proibir que uma pessoa ajude outra e faça acordos de ajuda múltipla, porém existem outros critérios e subterfúgios que o sistema credor-punitivista-vigilante pode encontrar para reprimir grupos sociais, seja pela espionagem e repressão direta, seja pela poluição do próprio sistema, por exemplo através de pedidos de ajuda falsos, mal intencionados ou “parasitas” (que pedem ajuda mas não pretendem oferecer nada de volta para o bem comum).

Daí a importância de pensarmos nas matemáticas do valor e noutros arranjos de produção e troca viáveis dentro de um mundo endividado e conjuntamente com outras medidas de proteção, para que a ajuda múltipla não seja irrelevante por conta desses riscos.

4.9 Desdobramentos

Não sabemos os desdobramentos desta teoria do valor e desta prática de acordos aqui sugeridas. Num primeiro momento, podemos vislumbrar que, no limite desta teoria, o endividamento excessivo devido a acordos deve produzir uma prática social indistinguível de uma economia de dádivas onde não há expectativa de retribuição direta ou o uso da dádiva como demonstração de poder43. No caso da pedagogia também podemos vislumbrar um ótimo uso da ajuda múltipla: pessoas que aprenderam algo podem ensinar para outras, multiplicando o conhecimento ao invés de sempre recorrerem aos luminares do saber.

Por outro lado, a existência e a propagação dos acordos pressupõem um grupo social pertencente a redes de relacionamentos afins, o que em certo sentido limita a aplicação da ajuda múltipla: e quem não participa da rede? E no caso de grupos em conflito interno?

Além disso, este texto propõe um exercício explicitamente contratualista. Sem entrar em detalhes sobre as vantagens e desvantagens desta abordagem, o pressuposto contratualista nos auxilia na modelagem de equações macroeconômicas básicas. Mas o contratualismo só se faria necessário na ausência da espontaneidade: quando está implícito, ou é espontâneo, que uma pessoa ajuda a outra, aí não há necessidade de contratos.

Estas são apenas sugestões de desdobramentos possíveis: convidamos todas as pessoas que queiram contribuir para a análise de regimes econômicos fora do mercado para que pensem conjuntamente no que aqui foi meramente delineado. A experimentação também é encorajada: sem ela, toda esta discussão não passa de uma teoria descolada dos grupos sociais.

4.10 Referências

Bibliografia

Castro, Eduardo Viveiros de. 1992. «A ação coletiva: os tenotã mõ e os tã ñã». Em Araweté: o povo do Ipixuna, 66–73. CEDI - Centro Ecumênico de Documentação e Informação. http://www.etnolinguistica.org/biblio:castro-1992-arawete.

Saravá, Grupo. 2008. «Em busca do inapropriável». https://sarava.fluxo.info/Estudos/Inapropriavel.

Zuboff, Shoshana. 2019. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. PublicAffairs books.


  1. Republicação, com mudanças e complementações, de texto em blog de 07/10/2018 a partir da versão original 1.0.0, de 26/06/2008. Este texto foi complementando este texto cerca de 16 anos depois de escrito, dada a importância e relevância do tema, assim como o benefício de anos adicionais de reflexão e vivência.↩︎

  2. Notar que esta definição de ajuda múltipla não é necessariamente equivalente à de ajuda mútua utilizada em muitos estudos sobre economia da dádiva: em alguns deles, a ajuda mútua ocorre quando cada uma das partes envolvidas no acordo deve se ajudar reciprocamente, enquanto que na ajuda múltipla isso não é necessário. Não pretendemos neste texto sugerir a suposta superioridade do conceito de ajuda múltipla sobre a ajuda mútua. Muito pelo contrário: na falta de um devido estudo sobre a literatura existente, preferimos utilizar um termo distinto da ajuda ou apoio mútuo (mas que eventualmente possa ter o mesmo significado).↩︎

  3. Os valores de \(v\) podem ser estipulados em cada acordo.↩︎

  4. Por conservar valor não queremos dizer que a moeda não sofre valorização e desvalorização, mas sim que a moeda “congela” trabalho.↩︎

  5. Começamos nossa somatória com \(p = 1\) pois, apesar de ser um caso em princípio bizarro (uma pessoa fazendo acordo consigo mesmo), não deixa de ser uma possibilidade: posso, por exemplo, fazer um acordo comigo mesmo e, caso o cumpra, ajudarei mais pessoas, sendo caso clássico disso é a solidariedade de ex-viciados, por exemplo. Outro argumento para manter \(p = 1\) é a simplicidade.↩︎

  6. Poderíamos supor um sistema onde cada acordo tivesse uma viralidade \(v\) própria, mas a complexidade do cálculo seria desnecessária para esta primeira exposição do assunto.↩︎

  7. Que fique bem explicado: \(r\) não inclui pessoas que não podem ajudar, mas apenas as que podem mas que ficaram de fora dos acordos.↩︎

  8. Na época da primeira versão deste texto, usei o termo “ação coletiva” baseado no texto Castro (1992); não imaginava que havia toda uma discussão sobre o “problema” da ação coletiva dentro da economia.↩︎

  9. Alternativamente, poderíamos definir o divisor como \(m^r\) ao invés de \(mr\), o que faria com que \(S\) fosse muito mais sensível à inclusão ou exclusão social. Optamos, no entanto, por uma abordagem em que \(m\) e \(r\) contribuem com igual teor.↩︎

  10. Num sistema mais próximo da realidade teríamos trocentas outras variáveis.↩︎

  11. Vide Ensaio 2.↩︎

  12. O contrato hobbesiano é o que mais parece com o que Zuboff (2019) chama de “descontrato” (uncontract).↩︎

  13. Lanço aqui um neologismo em princípio paradoxal e aparentemente contraditório, “anarco-estatismo”, a ser descrito em trabalho futuro, ou atualização futura deste texto, juntamente com a conceituação de Máquinas de Estado.↩︎

  14. Cerca de três anos depois de escrever a versão original do texto, isto é, em 2011, comecei a programar uma “plataforma”, o Clube da Muamba, que seria apenas de empréstimos (e no futuro doações) de coisas… e que até poderia ser uma etapa para um sistema ulterior de anúncios de ajuda múltipla. Mas fiz sozinho e não dei conta da empreitada. Poucos anos depois, surgem as chamadas “plataformas” da “gig economy”. O Clube da Muamba nunca chegou a operar ou ter qualquer relevância, mas o fato dele e muitos outras iniciativas semelhantes antecederem as plataformas de precarização do trabalho pode ser um indicativo de que havia gente dos dois paradigmas investindo nisso.↩︎

  15. Importante notar que as chamadas “plataformas” da “gig economy” basicamente operam como “murais” de anúncio entre pessoas que oferecem ou buscam um serviço, mas operando sob um regime inteiramente distinto da ajuda múltipla.↩︎

  16. O uso da dádiva como demonstração de poder seria, por exemplo uma pessoa com mais recursos dar um presente a outra com menos recursos de forma que seja causado um vínculo de relação seja paternalista, humilhante, etc.↩︎