4 Informação: o Lixo da Indigência Artificial
Versão 1.0.0 - 16/12/202520
4.1 Introdução
Algumas palavras soam inofensivas mas trazem em si um pesadelo. Por isso, muitos conceitos precisam ser demolidos antes de serem usados. Informação é um deles. Vamos lá?
Trataremos de informação, inteligência e apocalipse. O que uma coisa tem a ver com outra?
Contarei Uma Breve História da Informação – talvez um dos conceitos mais colonizador e colonizado – no triste enfoque eurocêntrico dos processos ditos civilizatórios, num intervalo de dois a quatro mil anos, envolvendo cerca de 300 gerações de gentes, da antiguidade até as recentes armas de destruição em massa.
Trataremos do que foi, do que é e do que pode vir a ser Informação: as origens, transformações e destinos desta palavra, e como ela sempre esteve associada ao que atualmente chamaríamos de controle biológico, individual, social e maquínico.
Tentarei decifrar o “código” por detrás da “informação”, digamos assim, e mostrar como outros tipos de conceitos de informação são necessários, já que o atualmente hegemônico esta associado à guerra e à destruição21.
Minha crítica tende a ser pesada e indigesta na tentativa de que não seja absorvida pelo sistema que ela tanto critica. Abordagens mais brandas foram facilmente assimiladas no passado, numa dinâmica já apresentada em trabalho anterior22. Para uma outra história da “informação” menos perturbadora e mais tranquila, recomendo Gleick (2011).
Há um esforço ativo em parte da filosofia ocidental contemporânea de retirar qualquer carga histórica do conceito de informação, de torná-lo a-histórico e consequentemente aplicável a qualquer momento; também de universalizá-lo, para que se aplique a qualquer situação, como aponta Peters (1988)23.
A informação tem sido alçada a um conceito metafísico último, além até de matéria e energia24, talvez até de espaço ou tempo, numa realização máxima do “ideal” das teoria das ideias e das doutrina das formas, de “conhecer” aquilo que só pode ser conhecido quando quando é intangível para os sentidos. Também seria aderente a qualquer sistema ontológico-filosófico, além de um conceito fundamental da epistemologia25.
Trata-se de um “take over”, uma tomada de controle conceitual26:
PI [Philosophy of Information] possesses one of the most powerful conceptual vocabularies ever devised in philosophy. This is because we can rely on informational concepts whenever a complete understanding of some series of events is unavailable or unnecessary for providing an explanation. In philosophy, this means that virtually any issue can be rephrased in informational terms. This semantic power is a great advantage of PI understood as a methodology […]. It shows that we are dealing with an influential paradigm, describable in terms of an informational philosophy. But it may also be a problem, because a metaphorically pan-informational approach can lead to a dangerous equivocation, namely thinking that since any x can be described in (more or less metaphorically) informational terms, then the nature of any x is genuinely informational. And the equivocation obscures PI’s specificity as a philosophical field with its own subject. PI runs the risk of becoming synonymous with philosophy.
Isso tem ocorrido mediante um reiterado processo de desinteresse, ou mesmo invisibilização histórico-narrativa da genealogia deste termo, com uma criação de consenso tão forte que torna difícil propor modos de pensar que escapem do informacionalismo.
Necessário enfatizar que todo esse esforço resultou, no “plano teórico”, numa grande confusão do que seria “informação”. Apesar disso, na prática ocorreu uma redução conceitual da “informação” ligada principalmente à chamada “Teoria Matemática da Informação” de Shannon-Weaver sintetizada nos fins dos anos 1940.
Tal sacralização paradoxalmente também produz o efeito oposto, de aproximar o termo do que podemos entender por “poluição”, e que parece ser o pináculo conceitual desta palavra em sua trajetória colonizadora.
Daí que é preciso analisar os conceitos de informação numa perspectiva histórica e crítica, desfazendo uma espessa camada de mistificação em torno deste termo.
Este é um resgate etimológico, filosófico e metafísico dentro da tradição ocidental e eurocêntrica27, feito para que em seguida o conceito possa ser desconstruído, descolonizado, ressignificado ou mesmo destruído.
Também trataremos das mudanças na relação entre “informação” e “inteligência”, assim como mostraremos como o conceito de informação pode ser uma nova velha maneira para “ler” as mazelas do mundo28.
Tentaremos ir um pouco antes e um pouco além desta história crítica, com o amparo de estudos diversos e com a nossa própria contribuição.
A exposição a seguir será mais epifenomênica: por concisão, não trataremos de todas as “forças históricas” envolvidas, mas especialmente os efeitos delas nos conceitos abordados. A linha aqui seguida tende a ser compatível com aquela que historicamente é de chamada “materialista” – sem entrar agora no vasto tema do que é matéria, se ela existe etc – e talvez (des)construtivista – você é quem diz. Mas ela também não deixa de ser infraestrutural ao seu próprio modo, ao começar por “baixo” no campo do pensamento ao questionar alguns conceitos fundamentais. Desconstruindo-os já é possível desconstruir muita coisa, camada por camada:
- Primeiro, retirando uma aura de mistificação sobre os conceitos de informação e inteligência. Aquilo que tem sido denominado de “informação” já não informa, e o que se chama de “inteligência artificial” está muito longe de ser algum tipo de “inteligência”. Esta aura também reduz a potência social para imaginar alternativas.
- Em seguida, debruçando sobre os arranjos sociotécnicos concretos para constatar assimetrias, desigualdades, desperdícios etc.
4.2 Resumização
Informação virou Poluição. Inteligência virou Automação. Não estou defendendo nada disso, apenas constatando mudanças recentes dos últimos duzentos anos.
O presente texto é um resumo do volume A Triste História da Informação29, que faz uma extensa crítica ao que se chama de “Inteligência Artificial” a partir de uma análise do que hoje mais usualmente é considerado como “Informação”.
Faço isso a partir da minha própria necessidade de entender como esses conceitos majoritários foram construídos historicamente. Foi pelo estudo da “Informação” que entendi a tendência do aumento da sua quantidade no mundo, associada a mecanismos mais e mais capazes tanto de “processá-la” quanto de “produzí-la” – dentre eles os que hoje são erroneamente chamados de “inteligências artificiais” e que basicamente consistem em procedimentos computacionais do tipo estatístico.
A compreensão de “Informação” então nos dá uma base crítica sobre “Inteligências Artificiais”.
Este estudo abrange o termo informação desde antes da sua existência e talvez até o princípio do seu fim, identificando três estágios principais:
Ignismo dos períodos clássicos, quando a “chama” da informação acende.
Iluminismo, com a ascensão da tocha do empirismo e dos dados estatísticos das burocracias estatais.
Hiperluminismo, ou Explodismo, com o incêndio pela ascendência das tecnologias informacionais.
O conceito de in-formação surge, no ocidente, com anoção de uma formação intensa.
Mas o que seria forma?
- Palavra de etimologia incerta, possivelmente oriunda do proto-indo-europeu.
- Sua origem pode haver uma relação com a atribuição de beleza.
- Usada para denotar o delineamento das coisas.
- Posteriormente associada ao calor dos fornos.
Avento a hipótese de um conteúdo implícito na palavra forma: técnica e artesania do belo; e que a forma tem uma associação com as tecnologias dos fornos, da cerâmica, da ferraria.
Uma palavra para forma já existia no latim – fōrma –, e com traduções adicionais de conceitos filosóficos gregos ela vai ganhando ainda mais corpo:
Grego Latim
τύπος (typos) \
μορφή (morfé) \
>------> fōrma
εἶδος (eidos) /
ἰδέα (idea) /
Outros conceitos relacionados são traduzidos no latim como “informação” usados para explicar processos de formação intensa e específicos:
Grego Latim
ὑποτύπωσις (hypotyposis) \
ἐντυποῦν (entypoun) \
διάταξιν (diataxin) \ infōrmo
>-> informatio
χαρακτηρισµός (charakterismos) / informis
μανθάνω (manthano) e πείθω (peitho) / ...
πρόληψις (prolepsis) /
No período ignista, tanto “Forma” quanto “Informação” designam processos de modelagem de corpos baseados nas Doutrinas das Formas associadas ao pensamento dos filósofos gregos Platão e Aristóteles mais ou menos no seguinte esquema:
Plano/dimensão \
das Formas \
\ Processo de
>-----> Formação ----> Coisas
/ Intensa
/
Matéria bruta /
O processo de formação intensa poderia envolver um ser divino (demiurgo) capaz de acessar um “Plano”30 das Formas – indisponível para pobres mortais –, e conectá-lo à matéria bruta para modelá-la e assim produzir os seres existentes. Mas também poderia envolver formas de algum modo já pré-existentes nos seres – em gerais masculinos – cujas sementes ou sêmem poderiam se desenvolver na matéria bruta, reproduzindo a forma original.
Resumidamente, tais Doutrinas das Formas tem um caráter autoritário por implicitamente associar a possibilidade de alteração das formas (transformações) apenas a seres especiais, demiúrgicos, masculinos etc, atribuindo a outros seres num papel passivo. O papel de “inteligência” neste momento parece estar associado ao ato criativo.
Já no período iluminista, as “Informação” passam a designar processos formativos ocorrendo dentro da mente humana, não necessariamente reproduzindo com fidelidade as formas efetivamente das coisas, estão mais ligadas à sensações do que aos fatos. Inteligência representaria a capacidade de dar “sentido aos sentidos”.
É o começo de um deslocamento da “Forma”, que de um plano inacessível passará a habitar a mente humana. Essa mudança está associada à dita “revolução científica” de uma época e ao pensamento dos chamados empiristas. Uma abordagem semelhante ocorreria no nível dos nascentes Estados-Nação, com a necessidade de governar vastos territórios e numerosas populações, requerendo grande quantidades de informações – é a partir da “estadística”, o estudo dos Estados, que surge a estatística enquanto ciência nomeada enquanto tal.
O processo se intensifica. O Hiperluminismo é caracterizado por um aumento ainda maior do descolamento do conceito de “informação”, que agora não necessita mais habitar nenhum lugar (nem Plano das Formas, nem mente humana): “informação” seria imaterial e existiria por si própria.
O conceito também passa por uma atomização similar à que teve a matéria nas revoluções da física e da química: seria passível de redução a uma unidade fundamental, o bit, permitindo não somente que fosse tratada como mercadoria – já que tudo aquilo quantificável pode ser transacionado – como passaria a inundar o mundo.
Inteligência então se transforma na capacidade de ingerir e processar informação, produzindo “conhecimento”. Inteligência deste tipo passa a ser mais e mais uma questão fundamental não para obter vantagens competitivas entre indivíduos e empresas, como uma questão de “Segurança Nacional”. Consequentemente, promover a desinformação ao outro passa a ser o corolário, sendo crucial processar corretamente as informações úteis e promover informações e conhecimentos inúteis, senão mesmo falsos, para os inimigos.
A Informação passa a ser um novo campo – ou espectro – das guerras e disputas contemporâneas sob as seguintes diretivas implícitas nesta dinâmica:
- Obter e processar a maior quantidade de informações, produzindo o concimento estatégico de maior valor e já pronto para a tomada de decisões.
- Obter vantagem indireta da quantidade de informações de baixo valor cada vez mais disponível – pois a existência desta pode saturar os inimigos incapazes de arcar com os custos de selecionar o que vale e o que não vale.
- Eventualmente fomentar ativamente a produção de informação de baixa valoração.
A vantagem competitiva se traduz para a maior capacidade de processamento, isto é, de computação de toda essa massa informacional; e eventualmente também da capacidade de produção de mais informação.
Trocando em miúdos, “informação” tem se tornado um novo tipo de poluição, e somente quem possuir recursos suficientes conseguirá navegar nesse mar de lixo, não sem deixar pelo caminho ainda mais detritos. As (mal)ditas “Inteligências Artificiais” estão inseridas neste contexto de produção artificializada de indigência social.
As seções a seguir detalham essa história simultaneamente longa e rápida, e que pode ser resumida através deste esquematismo:
Ignismo Iluminismo Hiperluminismo
Forma -> Informação -> Estatística -> Indigência Artificial
Notícia Privatização do "intelecto"
Dados Neocolonialismo
Vigilância
Racismo algorítmico
Poluição
Guerra
Bomba
Para não ficarmos apenas no fatalismo esquemático, também existem alternativas que nos fazem repensar e praticar novos arranjos informacionais e de disputa do que pode ser considerado como inteligência.
Isso e muitos outros detalhes deste estudo estão num volume próprio31 que, se não garantem uma exposição informativa, daquelas que de modo rápido e indolor “agregariam” conteúdo útil, agradável e divertido, podem ao menos fazer com que você não pense mais sobre informação da mesma maneira.
References
Contribuições dadas inicialmente num debate do evento “Bifurcar: Tecnopolíticas da Retomada”, realizado na sede do Coletivo Intervozes, em São Paulo - Brasil, nos dias 8 e 9 de Dezembro de 2023 EC. Posteriormente expandidas e complementadas. A partir da versão 1.0.0 destes Ensaios Vertiginosos, apenas a versão resumida fica aqui disponibilizada, com a íntegra do texto movida para um volume próprio, Rhatto (2026); caso tenha chegado até aqui por conta de algum referência mais antiga, considere consultar versões dos Ensaios iguals ou anteriores à 0.0.25, conforme necessário. Este resumo corresponde à versão 0.0.2 do texto integral.↩︎
Meu interesse pelo assunto se consolida durante estudo em sobre cibernética, que me levou ao de informação. A urgência dos tempos e dos debates, assim como a violência em que a informatização tem sido imposta, me fez compilar este texto o mais rápido que pude. Em co-autoria com o Erro, numa parceria involuntária que estimula o debate.↩︎
Um exemplo é a famosa passagem do cibernético Norbert Wiener,“Information is information, not matter or energy. No materialism which does not admit this can survive at the present day”, Wiener (1961) pág. 32.↩︎
Seguiremos a linha esquemática de Peters (1988)28, e esboçaremos alguns estágios principais do termo informação.↩︎
Daí talvez a origem do sentido atual da palavra “plano”, oriunda possivelmente geometeria para em seguida designar um roteiro para produção de algo.↩︎