2 A Marca
Versão 0.0.1 - 20/09/20241
Definir consiste em nomear, e toda definição2 implicará consequentemente na criação do seu termo oposto, como uma marca feita em algum espaço delimitando o que está dentro e o que está fora3.
Definição 2.1 (Distinção) Consideraremos então o ato consciente mais básico do nosso pensamento a distinção que intencionalmente produz diferenças ao dar nomes às delimitações feitas por nós ao descrevermos o mundo. Tais delimitações serão chamadas de Marcas.
Como distinguiu o matemático G. Spencer-Brown em seu cálculo generativo4, não haverá distinção sem haver motivo e só haverá motivo se os conteúdos internos e externos da distinção são percebidos como diferentes em valor:
Distinction is perfect continence.
That is to say, a distinction is drawn by arranging a boundary with separate sides so that a point on one side cannot reach the other side without crossing the boundary. For example, in a plane space a circle draws a distinction.
Once a distinction is drawn, the spaces, states, or contents on each side of the boundary, being distinct, can be indicated.
There can be no distinction without motive, and there can be no motive unless contents are seen to differ in value.
If a content is of value, a name can be taken to indicate this value.
Thus the calling of the name can be identified with the value of the content.
Uma distinção é um ato de separação do mundo. Se há uma separação no mundo, a quem ela interessa? Por que é interessante que haja diferenciação no que percebemos no mundo e não uma noção de que o mundo não é feito de objetos e sim de um todo comum e inseparável? Por exemplo, o que faz você considerar que o texto à sua frente compõe um objeto diferente de outros que estão à sua volta? O que faz você considerar que o mundo é feito de coisas distintas e não simplesmente de manchas, sons, texturas e cheiros vindos de um todo emaranhado? Passamos a distinguir mais e mais temas de um novo tipo de música ou sabores de uma culinária desconhecida somente após uma aprendizagem que consiste na interação com o novo e que, a depender do processo, pode criar tipos diferentes de distinção forma-conteúdo5.
Assim, motivo, valor e percepção não podem ser considerados como necessariamente universais, fundamentais e comuns a todos os sujeitos que percebem o mundo. As “marcações mentais” que distinguem o mundo em seres, coisas ou mesmo objetos separados ou interligados entre si podem ser diferentes de pessoa para pessoa, de cultura para cultura. Podem vir da relação dos sujeitos com o mundo e também de propósitos específicos de utilização ou extração de valor daquilo que é separado do resto. Num Mundo Implicado6, marcações parecem ser sempre arbitrárias.
Aqui já vemos uma espécie de tecnologia de entendimento prática e ao mesmo tempo perigosa: tanto a Definição de Definção7 quanto a de Distinção8 compõem um aparato possivelmente colonizador do mundo, cuja colonização se inicia com a diferenciação em nossa mente daquilo que existe no mundo, ou mais precisamente: começando até pela distinção entre si e o mundo.
Toda distinção é uma discriminação, já que o dentro que está nomeado passa a não mais corresponder ao fora. A distinção produz apartação, isto é, a divisão e separação do mundo em partes.
Tais marcas – ou emblemas – na nossa mente posteriormente podem até serem impressas na nossa relação com o mundo, quando passamos a agir separando e dividindo aquilo que estava junto, ou unindo o que para nós estava separado. Marcas que percebemos como tais no mundo são “transferidas” ao nosso pensamento como marcas de distinção terminológica. Marcas que nos dão a primeira noção de memória.
Quais seriam os pressupostos deste tipo de pensamento marcador? Consigo pensar em ao menos dois:
As distinções são feitas em sequências definidas. Este pressuposto funciona bem na análise de discursos e outras construções que seguem sequências mais fixas e lineares, mas é muito difícil de ser aplicado em dinâmicas mais complexas.
As próprias distinções são definidas, isto é, existe uma fronteira bem delimitada e identificável em que é operada a separação do Universo.
Diga-se de passagem que esses pressupostos são extremamente frágeis: definição, delimitação e identificação perfeitas são operações forçosas frente às indefinições, indeterminações e indiferenciações do mundo. A precisão é um pressuposto meramente discursivo e arbitrário, assim como os recortes classificatórios. As marcas existem, antes de tudo, nas mentes – como dispositivos, como maquinações mentais9.
Consequentemente, com a fundamentação do pensamento na marca, a operação lógica básica não é a comparação nem a adição. A operação lógica fundamental é a marca, que simultaneamente adiciona, subtrai, divide, multiplica e compara!
Se pensadores como Deleuze fazem a filosofia da diferença10 – e da repetição –, aqui faremos a filosofia da marca – e da sua repetição –, que contém a diferença. Onde será que ela nos leva?
Vejamos: a a marca mais básica é a não-marca, correspondendo a zero marcas e um único território, ou espaço-tempo, não dividido. A primeira marca corresponde à primeira diferença – cada pedaço dividido corresponde ao todo menos ao outro pedaço – e à divisão em dois – o pedaço original foi dividido em duas partes –, à multiplicação por dois – o que era um virou dois –, à adição de dois – duas partes formam um território – e à comparação entre dois e também entre a soma de dois que formam um todo.
A marcação do mundo é então a tecnologia básica da divisão e da conquista, da modificação e da extração: é a base do mecanismo colonial. Consequentemente, da discriminação: a primeira marca já revela uma escolha, uma tomada de decisão. A primeira distinção cria uma fronteira no cosmos que se torna dividido em duas “coisas”. No caso da dominação/opressão social, as primeiras discriminações seriam aquelas cujas categorias são chamadas de raça, gênero e classes, a partir de onde se estabelecem divisões do trabalho “naturalizadoras”. Creio que, ao menos no Ocidente, esta noção de marcação e distinção tem sido fundamental nas sociedades de dominação, não se tratando de ideia nova, muito pelo contrário.
Mas será que o destino da marca é apenas dominar? Poderíamos pensar em marcas da emancipação? Em que para multiplicar (o pão) é necessário dividir (as sementes)? E em que para somar (esforços) é preciso subtrair (distribuição de riquezas, tirando de quem tem mais e dando a quem tem menos)? Onde dividir ajuda a organizar e trabalhar pela mudança social?
E por que insisto nesta noção de marca? Ora, é a ideia de marca que recorta o mundo quando percebido de acordo com a nossa tecnologia contemporânea majoritária. As noções de recorte e seleção são bases para as de sistema e máquina e também para explicar as divisões políticas ao longo desta série de ensaios. Sobretudo, porque há uma grande ambiguidade na noção de marca que vale ser articulada.
A partir desta noção de Marca será delineado um conceito de Estado: marca que indica uma situação; um conceito de Golpe: marca produzida por choque brusco; um conceito de Tortura: marca impressa no corpo; um conceito de Secreto: marca que nem sempre está visível11. É desta concepção de Marca que posso extrair a a noção de Forma, e das mudanças de forma entender o que é a Transformação.
Nestes ensaios, tento esboçar uma filosofia partindo da Marca ao invés de partir da Diferença como conceito fundamental, mas evidenciando que Marca e Diferença são plenamente compatíveis, já que a partir da marca é possível enunciar a noção da diferença, entendendo que a percepção das diferenças viria primeiro da possibilidade de registrar (marcar) uma situação (um “estado”) para que então seja possível perceber e indicar mudanças situacionais.
Fica então explícito que a definições e distinções tais como feitas nestes textos não são livres de contexto e muito menos de opções políticas. Ainda, nem sempre é simples entender quais foram as escolhas tomadas e em qual contexto para a afirmação de definições e distinções, mas faço meu melhor possível nestes ensaios.
References
Este capítulo fazia parte de Rhatto (2024b) até a versão 0.0.11, quando então foi movido para o presente volume e recebido uma versão própria.↩︎
Especialmente as definições criadas de acordo com a Definição de Definição contida no volume anterior, “Um Método Arbóreo-Espiral”, Rhatto (2024b).↩︎
A distinção surge antes mesmo de darmos um nome a ela. Mais fundamental é a distinção feita, pré-verbal. Inverti a ordem nexta exposição ao definir primeiro a definição e depois a distinção pois a própria noção de distinção que utilizo precisa ser definida. Há então uma circularidade entra ambas definições-distinções!↩︎
Poderíamos aqui nos desviar para o tema de como e que tipos de pensamentos existiriam sem que distinções e definições fossem feitas, porém me falta a linguagem que tal discussão requer, se é que ela comporta alguma linguagem já que ela implicitamente dividiria pensamentos entre os que distinguem dos que não distinguem, o que já seria uma grande complicação pois estaríamos em busca de um pensamento indistinto e indistinguível. Não só seria um desvio do qual no momento sou incapaz de realizar como já começaria este ensaio pela fuga absoluta do tema proposto!↩︎
Definição constante no volume anterior, “Um Método Arbóreo-Espiral”, Rhatto (2024b).↩︎