2 Agouritmo: Produção da Realidade Diminuída
Versão 0.0.3 - 04/05/20241
2.1 Aproximação
A presente contribuição será mais conceitual e vinda da computação, mas sem nenhuma pretensão de “computacionalizar” a realidade, e sim mostrar quais são algumas das consequências de um modo de pensar colonialista amparado pela computação.
Gostaria de me aproximar das seguintes questões:
O que é computar?
Existe propósito intrínseco à computação? Ou seja, para quê se computa?
Para onde a computação colonialista nos empurra?
2.2 Extração
Para começar essa aproximação, gostaria de adotar um termo específico para diferenciar aquilo que no campo socioambiental brasileiro é chamado de “extrativismo”, que mesmo sendo um processo contendo alguma herança colonial e um termo possivelmente exógeno, foi adotado por algumas comunidades em suas lutas legítimas.
Não acredito que o termo “extrativismo” seja o mais adequado para definir tais modos de viver que dependem da floresta em pé, mas ao mesmo tempo é um termo bastante usado. Enquanto em alguns contextos a palavra “extrativismo” é usada para designar tais grupos sociais, noutros ele se refere a processos de exploração de recursos até a exaustão.
Entendendo que possa existir uma ambiguidade na palavra “extrativismo”, trabalharei com um termo alternativo: “extracionismo”, indicando não somente a retirada de seres de um território como a conversão destes seres em mercadoria, juntamente com a exaustão do território.
Assim, chamarei de “extracionismo” o processo de exaustão pela conversão ao máximo de seres em mercadoria, entendendo por seres tudo aquilo que contém um Ser, não somente os considerados viventes, incluindo assim os “produtos” do agronegócio como também todos que possuem corpos, inclusive aqueles ditos inanimados como minerais, hidrocarbonetos, o gás e a própria água.
O extracionismo, como processo de desmanche e transporte, é apenas uma das etapas sequenciais da conversão da matéria de biomas em montanhas nos aterros sanitários, além da poluição dispersa por todo sistema Terra.
Extracionismo então contém exaustão e contaminação.
Usarei o termo extração como sinônimo de extracionismo, subentendendo os processos coloniais de exploração de corpos.
Extrativismo e extracionismo seriam então dois modos de extração, porém num deles a escala, o escopo e o impacto é muito menor.
2.3 Computação
Mas o que a computação tem a ver com o extracionismo?
E o que entendemos por computação?
Talvez esta palavra já nos seja uma noção primitiva no sentido de ser intuitiva demais para que consigamos explicá-la com facilidade para além de associá-la a processos de cálculo.
Podemos pedir ajuda à etimologia, que situará a palavra computō no latim clássico, onde o prefixo com pode indicar um ajuntamento, uma aglomeração, enquanto o sufixo putō pode indicar tanto limpar quanto ordenar, colocar algo num arranjo, ajustar234.
Entenderei aqui então a computação num sentido mais amplo como um processo de ordenamento ou “limpeza”, entre aspas, o que nos permite associar à computação não somente ao cálculo quanto à própria transformação de um estado de coisas em outro, aplicável inclusive aos processos de modificação de territórios.
Entendo também a palavra computar associada à palavra amputar, ambas compartilhando o mesmo sufixo de ordenamento, mas nesta segunda temos o prefixo am possivelmente indicando corte e separação5.
Computação ordena/limpa juntando, enquanto a amputação ordena/limpa separando.
De modo que os processos de extração nos territórios se caracterizam por amputações num local, para aquilo que foi extraído seja computado num outro local. O que é chamado de “matéria prima” é a amputação territorial que possibilita a computação de produtos em outros locais.
Neste momento, não entrarei na questão do que é considerado como limpeza ou ordem, o que por si só já nos permitiria questionar amplamente os processos extracionistas.
2.4 Algoritmização
E como ocorre este processo que transforma um estado considerado indesejável ou incorreto, para uma forma/estado posterior, desejável e correta de acordo com um critério arbitrário?
É aqui que entra a noção de algoritmo, já para ser desconstruída.
Operações de computação e amputação podem ocorrer de várias maneiras. Podemos pensar em junções e ordenações que ocorram ao acaso ou sem critérios bem definidos.
Mas um processo de ordenamento baseado em algoritmo é todo aquele que pode ser descrito por um conjunto explícito de etapas sequenciais e definidas.
Mesmo que um processo seja infinito, isto é, dure “para sempre”, se ele for composto por etapas, ou instruções sequenciais e definidas, então o processo será baseado em algoritmo.
A palavra algoritmo surge provavelmente da latinização do nome de um importante autor árabe de um tratado de matemática6 onde, talvez pela primeira vez, problemas de cálculo tenham sido expostos de maneira abstrata, ou seja, era um texto preocupado sobretudo em ensinar as etapas sequenciais para resolução de problemas de cálculo ao invés de apenas se preocupar com problemas específicos.
Um algoritmo então não é a resolução de um único problema de cálculo, como a soma de dois números inteiros específicos, mas sim um conjunto de instruções que permite a resolução de quaisquer problemas que tenham a mesma forma (isomorfia) com outros, ou seja, que possuem formas semelhantes dentro de uma mesma “classe” de problemas, como por exemplo o procedimento para somar dois números inteiros quaisquer.
Contudo, a palavra algoritmo tem sido mistificada e elevada ao status de portadora de um verbo miraculoso capaz de resolver qualquer tipo de problema, especialmente social.
Quando alguma empresa afirma que possui um algoritmo que resolve um problema, as operações desse algoritmo dificilmente são mencionadas e muito menos questionadas. Algoritmos hoje também tem se tornado sinônimos de segredos industriais.
Para escapar destas narrativas sacralizantes, é importante que entendamos que um algoritmo nada mais é do que uma descrição da mecânica de um processo computacional.
Assim, a palavra algoritmo basicamente esconde a palavra mecânica.
Algoritmos não são por si mesmos arcanos secretos e insondáveis, muito pelo contrário: algoritmos são pura mecânica descrita!
Algoritmos não são verbos divinos que ordenam e executam apenas pelo poder dos ventos, ou melhor dizendo, das ditas “nuvens computacionais”, mas são apenas as descrições que precisam estar inscritas em algum sistema físico para que possam ser realizadas.
Há hoje uma série de narrativas alienadoras que insinuam uma dicotomia computacional matéria-espírito: a narrativa do algoritmo sorrateiramente coloca na computação uma dimensão que não estaria assentada numa materialidade, como se houvesse um espírito descolado da matéria, numa “nuvem” invisível e onipresente onde a computação é realizada. Narrativas nas quais não somente os algoritmos estão investidos de uma aura de certeza divina e infalível, como também se constituem na maneira “correta” e “única” de ordenar a sociedade.
É importante entender que qualquer algoritmo se assenta numa base material. A computação é de base material. Algoritmo é apenas o seu espectro e neste aspecto existe somente como abstração, se desmanchando facilmente após um exame atento!
Por serem explicitamente definidos, algoritmos estão associados a mecânicas ordenadas e portando podem ser usados em processos de computação e amputação que produzam resultados também definidos de acordo com uma forma previamente determinada.
O movimento de um trator que remove a terra e seus minérios para um caminhão pode seguir etapas bem definidas no processo extracionista.
A atividade de uma linha de montagem fabril, ainda mais após o taylorismo e a automação, é cada vez mais descrita em termos de sequências de operações totalmente definidas.
Se inicialmente as linhas fabris estavam baseadas no movimento produtivo de seres humanos, tal coreografia tem sido estudada, cronometrada, atomizada e por fim abstraída no menor conjunto possível de movimentos que produza um determinado resultado.
Aquilo que um ser humano computava, ou seja, o trabalho anteriormente executado por alguém, pode então ser executado por um objeto técnico, desde que o trabalho possa ser descrito em sequência de etapas definidas.
A abstração do processo mecânico permite então e também que coreografias específicas sejam transferidas de um corpo a outro. Esta abstração, quando descrita passo a passo, é tipicamente chamada de algoritmo.
Tal avanço da mecanização aumenta a capacidade de extração tanto das coreografias produtivas humanas quanto da amputação de recursos dos territórios.
Portanto, a algoritmização é parte fundamental do processo extracionista.
2.5 Agouritmização
A extração de coreografias é parte fundamental do próprio processo de criação de algoritmos. Primeiro um problema é resolvido manualmente, para que então seja entendido e possa ser abstraído num conjunto de instruções.
Quando a extração de coreografias passa a ser realizada continuamente, dizemos que o processo é de extração de todo o comportamento de um ser, ainda mais quando envolve todas as manifestações que indiquem algum estado mental.
Isto é precisamente o que ocorre hoje, onde, numa escala inédita, o comportamento de bilhões de pessoas é continuamente extraído para alimentar não somente vastíssimos arquivos de experiência humana como também para aprimorar algoritmos de comportamento.
O extracionismo comportamental está implícito na operação dos dispositivos de computação pessoal (ou diríamos de amputação pessoal?) chamados usualmente de telefones celulares, laptops etc, que são basicamente unidades de vigilância individual operando através de aplicativos criados dentro da lógica das chamadas tecnologias do vício e da dependência.
Não somente tais dispositivos criam dependências nas pessoas, como hoje sua utilização tem se tornado um imperativo para a efetiva participação social, permitindo que os sistemas de extração de comportamento tenham, na prática, acesso a fontes inesgotáveis de experiência humana.
E qual é a função destes algoritmos?
Uma das funções é prever as próximas ações das pessoas. Para, em seguida, tentar influenciá-las.
Exemplo corriqueiro é o dos algoritmos de recomendação de conteúdo baseados na experiência pregressa de uma pessoa. Tais algoritmos tanto restringem as opções recomendadas, privando as pessoas de um conteúdo novo e potencialmente interessante, quanto induzem as pessoas a cada vez mais afunilarem seus comportamentos futuros num conjunto menor de escolhas possíveis.
A capacidade de prever a ação futura das pessoas já é em si um produto vendável e muito rentável. A capacidade de induzir o comportamento futuro é um produto ainda mais poderoso.
A dinâmica atual de extração de comportamentos já foi descrita por outras pessoas, como por exemplo no trabalho de Shoshana Zuboff sobre o que ela chama de Capitalismo de Vigilância, e que apesar da sua perspectiva liberal já é um marco no tema.
O que tenho a contribuir a respeito dos processos de predição e indução de comportamento é que talvez a mera definição dos mesmos em termos de algoritmos seja insuficiente para explicitar o que está de fato acontecendo, servindo para mascarar um processo de despossessão da capacidade política de indivíduos e grupos sociais.
Permitam-me então que crie outro neologismo para este processo.
Não chamarei de algoritmo a descrição de procedimentos para predição e indução de comportamentos, mas sim de agouritmo, me aproveitando da palavra portuguesa “agouro” cuja equivalente em espanhol é “agüero” e em inglês “augury”.
Uma consulta ao dicionário nos mostra que agouro pode significar 78:
Ação de prever o que acontecerá no futuro; vaticínio.
Previsão de algo ruim, de uma tragédia ou de uma notícia fatídica.
Aquilo que pode sinalizar um acontecimento futuro.
O que chamo de “agouritmo” então não é somente a predição do futuro, mas a tomada de medidas práticas para que o futuro ocorra conforme o previsto. Em outras palavras, um agouritmo é a produção da própria realidade futura.
Se os agouritmos operam em humanos ao induzir seus comportamentos futuros, o mesmo ocorre na extração/amputação territorial, já que grandes empreendimentos são baseados em projetos previsíveis e com a intenção de lucro garantido baseados numa prévia sondagem territorial.
Agouritmos portanto estão presentes em qualquer situação computacional onde o cálculo não é somente preditivo como também imperativo de transformar o mundo de um estado anterior para um estado posterior mais desejado por quem controla o processo amputacional/computacional.
Nem todo algoritmo é um agouritmo. A previsão numérica do tempo não tem a ambição e nem a capacidade de alterar as condições atmosféricas para uma situação futura específica.
Mas todo agouritmo é baseado em algoritmos.
O direcionamento, a indução e a imposição de comportamentos não são fenômenos novos. As instituições e dispositivos disciplinares ainda existentes são versões já formalizadas desse processo, mas os agouritmos ampliam a escala, o escopo e a capacidade de controle.
Todas essas tecnologias trazem consigo o perigo de, ao induzirem a situação ou realidade num momento posterior, de se transformarem em profetas de um futuro específico. Noutras palavras, o futuro que elas são usadas para criar pode ser usado para justificar o uso delas no presente como uma afirmação de que tal futuro é inevitável, porém sabemos que só é inevitável aquilo que já ocorreu.
Os agouritmos então são usados não somente como previsores e impositores de futuro como também e principalmente para justificar o emprego deles próprios. A imposição de uma sequência causal no mundo é usada para impor a si própria como única sequência causal possível, criando um loop causal auto-justificável.
Como por exemplo os agouritmos de racialização, que categorizam pessoas de acordo com vieses fenotípicos para então despossuí-las, encarcerá-las ou mesmo exterminá-las e ainda por cima associá-las à categoria social do crime e da desordem.
Os agouritmos resolvem os problemas que eles mesmos criam.
2.6 Conclusão
Apesar desta ser uma brevíssima digressão sobre extracionismo, amputação, computação e agouritmização, já temos elementos para considerar que:
Primeiro, é importante incluir o tema das tecnologias de extração do chamado colonialismo digital junto com a extração de recursos dos territórios. Tratam-se de processos semelhantes e que incidem em corpos.
Em segundo lugar, que não há propósito inerente aos processos de extracionismo e transformação. A única maneira em que eles podem ser defendidos é através da sua própria justificação pelo do emprego de profecias auto-realizáveis, ou agouritmos.
A máquina colonial não prevê limites para a amputação e computação dos seres. Seus agouritmos são atualizados e continuam processando indefinidamente e numa escala cada vez maior. Não há indícios nem horizonte de que ocorra uma parada automatica, em que a extração termine antes da exaustão dos recursos disponíveis.
Por fim, algoritmos, computação e mecânica não precisam ser necessariamente associados à racionalidade instrumental colonialista. Podemos praticar outros tipos de computação, convite feito no Capítulo 4.
Repensar significados dos conceitos pode ser um início da mudança do jogo, e o próximo texto analisa “Informação” e “Inteligência Artificial”.
Bibliografia
Este texto é um adaptação da fala para a Mesa 4 do evento Guerra de Mundos & Fraturas Extrativistas na América Latina: “Tecnologias da extração, capitalismo cibernético, colonialismo digital: para outras práticas de conhecimento insurgente”, em Outubro de 2021.↩︎
P.G.W Glare, Oxford Latin Dictionary (1968), Clarendon Press, págs. 383 e 1526.↩︎
Charlton T. Lewis e Charles Short, A Latin Dictionary (1879), Clarendon Press - http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0059:entry=puto (acessado em 01/10/2021)↩︎
Charlton T. Lewis, An Elementary Latin Dictionary (1891) - http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0060:entry=puto (acessado em 01/10/2021)↩︎
P.G.W Glare, Oxford Latin Dictionary (1968), Clarendon Press, págs. 113 e 124.↩︎
Sobre a origem da palavra “algoritmo”, consultar por exemplo Origins of mathematical words: a comprehensive dictionary of Latin, Greek, and Arabic roots (2013), de Anthony Lo Bello, págs. 10-14.↩︎