6 A ajuda múltipla e o valor social
Versão 2.0.2 - 02/07/2024296
Procurando resolver um problema prático, este texto sistematiza uma forma de promover a ajuda múltipla através de acordos sucessivos e virais. Para auxiliar na sua compreensão, é definida uma forma de cálculo do valor social e suas consequências são avaliadas.
6.1 Motivação
Em geral, quando ajudamos alguém (principalmente quando ensinamos algo), não há muita garantia que a pessoa ajudada passará a idéia pra frente, seja ajudando outrem ou passando o conhecimento adiante. Mesmo em coletivos horizontais, não-hierárquicos e baseados na ajuda mútua, não há necessariamente uma cultura de passar para frente a ajuda recebida. Por isso, estabelecemos neste texto uma sugestão de acordos de ajuda múltipla tanto como proposta de prática e sobretudo como reflexão da distância que os grupos sociais se encontram com relação a um regime de dádiva e não-escassez.
6.2 O acordo de ajuda múltipla
Para fomentar o aumento da ajuda entre as pessoas, criaremos o conceito de ajuda múltipla e proporemos um pequeno acordo padrão para o seu estabelecimento. Pois bem: ajuda múltipla é a forma de colaboração onde uma ou mais pessoas – grupo A – auxiliam outras – grupo B – com a condição de que estas últimas efetuem ajuda múltipla auxiliando outras pessoas – grupo C. Atente para o fato de que definição é recursiva (isto é, a definição necessita de sua própria definição): uma ajuda múltipla seria, por exemplo, Maria ajudar Lopes com a condição de que este ajude alguém no futuro. Note que o grupo C pode ser composto pelas mesmas pessoas do grupo A, mas não necessariamente: Lopes deve ajudar alguém, mas não necessariamente Maria297.
6.5 Estados enquanto bancos distribuídos
A ajuda múltipla pode oferecer um tremendo insight da inversão da dívida em dádiva.
Neste modelo, o Estado poderia ser entendido basicamente como uma função recursiva e um cálculo de valor da aplicação desta função de entropia social, isto é, o Estado é constituído por pessoas que recursivamente proporcionam o espalhamento de solidariedade juntamente com uma estimativa do grau de solidariedade (“solidez”, mas no sentido fluido) desta sociedade.
A ajuda múltipla seria capaz de detonar com o sistema bancário clássico – e o “banco” estaria pulverizado na miríade acordos.
É aqui que talvez estejam as principais objeções dos economistas:
- A moeda serviria como alocação de trabalho, desde os exemplos clássicos de trocar o que se produz por moeda e em seguida trocá-la pelo que precisa.
- E o Estado, na leitura liberal, seria o “garantidor dos contratos” firmados, seria um árbitro para garantir que dívidas sejam quitadas e que a moeda tenha valor enquanto garantia de troca; necessitando para isso arrecadar impostos, taxas e tarifas, que nada mais são do que tipos de dívidas automaticamente contraídas para com o Estado.
No fundo, o entendimento (neo)liberal é baseado num pressuposto de que as pessoas são “naturalmente” más e mesquinhas, e portanto o sistema econômico deve ser punitivo. Mas esta leitura inverte os termos em sua produção de realidade306: é a sobrevivência forçada num sistema punitivo de dívida financeira que empurra as pessoas a adotarem comportamentos “mesquinhos” e “maus”. Não é difícil agir generosamente com as pessoas para que se sintam respeitadas e retibuam a gentileza, ou ajudem outras pessoas.
Ou seja, o sistema punitivo só funciona se houve gente endividada. Tomemos de exemplo o contrato hobbesiano - o que é aquilo senão a aquisição de uma dívida perpétua, irrevogável e contraída por coação devido a uma profecida autorrealizada de um “Estado Natural” de todos contra todos que é trocada por um “Estado Soberano” de todos contra todos307?
Uma sociedade sem esse tipo de Estado punitivo teria de operar mediante outras garantias de “quitação de dívida” – dentro da lógica da dádiva e da generosidade, o que pode nos parecer absurdo dado o mundo em que vivemos, no qual é mais “racional” e “objetivo” se beneficiar de acordos de ajuda mas não ajudar ninguém; ou no qual as pessoas estão tão afundadas nas dívidas clássicas que desistem de fazer qualquer pagamento.
6.6 Logística
A ajuda múltipla resolveria o problema da dívida enquanto trabalho forçado e punição.
Mas o que dizer do problema logístico da alocação de ajuda? Como vou saber quem pode me ajudar, e como posso descobrir quem posso ajudar?
Ou seja, para um sistema de ajuda múltipla ser efetivo, seriam necessários sistemas do tipo “mural”, onde pedidos de ajuda são afixados… e isto seria uma espécie de “banco” – lugar onde se trocam mensagens sobre ajuda… onde poderia encontrar um praticantes da medicina que me ajude e depois encontrar alguém que precise de minhas habilidades, por exemplo.
Estes murais seriam uma Máquina de Estado… comporiam um Estado em constante (re-)constituição, até eventualmente compatíveis com uma noção de federalismo do tipo “anarco-estatista”308.
Estes murais comporiam bases de dados descentralizadas, ou mesmo distrbuídas, de pedidos de ajuda. No entanto, seria fundamental que tais mecanismos de troca de mensagens não contivessem informação sobre a dívida de ninguém. Quando um pedido de ajuda é atendido (ou expira), o mesmo poderia simplesmente desaparecer, não deixando rastros do que ocorreu, nem indicando quem ajudou e a dívida social “contraída”. Muito menos conter um sistema de “reputação”, classificando pessoas entre “boas” e “más” pagadoras, que “honram” ou não acordos. Caso contrário, um Estado punitivo teria condições básicas para existir.
Repetindo: não poderia haver uma base de dados de dívidas. A consequência é que a função Estado baseada no valor social seria incalculável, por falta de dados! E que assim seja!
6.7 Escalabilidade
Entendo a ressalva sobre uso das matemáticas pra “modelar” sociedades – modelar nos dois sentidos, de criar modelos pra entender a sociedade ou querer enquadrar a sociedade num modelo artificial. A economia hegemônica tem grande proeminência ao modelar a sociedade, mas a troco de uma tremenda perda de variedade, diversidade e diferença. A matemática empregada opera uma perda da identidade – indivíduos são apenas números, elementos de conjuntos etc – e com muita simplificação.
Por outro lado, temos problemas de larga escala que a meu ver a só conseguiremos resolver sem muito desperdício e exaustão dos recursos do planeta, caso matemática e planificação adequadas sejam empregadas.
Poderíamos fazer outros exercícios, como modelar a quantidade de casas que poderiam ser construídas dependendo dos parâmetros de ajuda múltipla médios numa sociedade; e até expandir o conceito de ajuda múltipla pra coletivos/agrupamentos humanos – famílias e povoamentos que se ajudam, federações que se ajudam e assim por diante, pensando na convergência de movimentos sociais em diversas escalas e escopos.
6.8 Riscos
É importante ir além de um idealismo crente de que seja necessário apenas criar as “plataformas” e os “protocolos” que avançaríamos estruturalmente na resolução do problema, passo a passo, incluindo cada vez mais gente nas redes de ajuda, apoio e solidariedade.
A implementação da ajuda múltipla não vem sem os seus riscos, oriundos do mero fato de ocorrer dentro de um mundo de concorrências entre pessoas e punições generalizadas.
O primeiro risco a se considerar é interno: a ajuda múltipla poderia degenerar num esquema pirâmide, emergindo a partir de assimetrias sociais – nas quais algumas pessoas poderiam fornecer mais ajuda inicial.
Vale ressaltar que a mecânica do esquema pirâmide jamais resolve os problemas de distribuição de recursos numa sociedade. Ela apenas os mascara.
O início de um esquema pirâmide é promissor: cada vez mais pessoas são incluídas – evidentemente quem está dentro se beneficia às custas das que acabam de entrar. Há a impressão de que todo mundo vai crescer, quando na verdade ocorre apenas a criação de uma nova pirâmide dentro da pirâmdide social pré-existente numa sociedade desigual.
Se o esquema pirâmide continuasse e toda a sociedade fosse incluída, a pirâmide do esquema basicamente substituiria a pirâmide social pré-existente na sociedade, requerendo um novo esquema pirâmide, ou seja, uma nova rodada do esquema pirâmide para criar a ilusão de inclusão.
Mas os esquemas pirâmides tendem a quebrar antes que isso ocorra, chegando num limite de crescimento.
A “estratégia de saída” do “investidor” que chega no esquema pirâmide consiste unicamente em achar mais pessoas para entrarem na pirâmide, abaixo dele, caso contrário terá prejuízo. Os últimos que chegam no esquema acabam se ferrando.
A conquista de direitos sociais mediante reformas aristocráticas com verniz democrático tem um quê de esquema pirâmide.
A ajuda múltipla oferece uma espécie de “imunidade” implícita contra esquemas pirâmides, pelo fato de que a dívida contraída por ajuda múltipla não se dá entre quem ajudou e quem foi ajudado, e sim entre quem foi ajudado e o resto da sociedade. Assim, qualquer iniciativa de “recrutamento” de pessoas para dentro de um “esquema” não favorece quem recrutou, e sim toda sociedade, inclusive pessoas que ainda não fazem parte da rede de apoio.
Outro risco, a ser avaliado, é externo: a captura, a ilegalidade, a poluição ou a irrelevância.
As ideias são capturadas, ou destruídas… movimentos sociais estão na linha de frente na tentativa de resolver problemas da vida prática pelo caminho da solidariedade.
Mas aí vem o capitalismo e aplica sua racionalidade unidimensional, impondo um choque de “eficiência” que varre do mapa muitas dessas iniciativas, apropriando-se das suas “inovações”309, o que já foi tratado por Saravá (2008).
A tarefa de “inovar” tem sido sempre impossível e ao mesmo tempo inescapável. Mesmo sabendo que, se uma prática começa a dar certo e não puder ser apropriada, ela será tornada ilegal e perseguida.
Seria a ajuda múltipla também imune a estes riscos externos? Acredito que parcialmente:
A ajuda múltipla não gera um valor monetário, isto é, ela não é “monetizável”. Me parece muito difícil se “apropriar” dessa “inovação” social sem que ela perca seu caráter inovador, isto é, sem que seja deturpada.
Sem querer dar ideias para o “outro lado” credor-punitivista, mas já expondo os perigos da deturpação da ajuda múltipla, “empreendedores” capitalistas poderiam – se é que já não fazem – criar “plataformas” de “inclusão” em sistemas de auxílio nos moldes do que hoje é chamado de “microtrabalho” ou “microtarefas”. Ou seja, mesmo que a ajuda múltipla em si mesma não possa ser apropriada sem perder seu caráter de ajuda múltipla, ela pode ser deturpada e enfrentará sistemas concorrentes operando dentro da lógica da dívida-punição310.
Pode parecer difícil proibir que uma pessoa ajude outra e faça acordos de ajuda múltipla, porém existem outros critérios e subterfúgios que o sistema credor-punitivista-vigilante pode encontrar para reprimir grupos sociais, seja pela espionagem e repressão direta, seja pela poluição do próprio sistema, por exemplo através de pedidos de ajuda falsos, mal intencionados ou “parasitas” (que pedem ajuda mas não pretendem oferecer nada de volta para o bem comum).
Daí a importância de pensarmos nas matemáticas do valor e noutros arranjos de produção e troca viáveis dentro de um mundo endividado e conjuntamente com outras medidas de proteção, para que a ajuda múltipla não seja irrelevante por conta desses riscos.
6.9 Desdobramentos
Não sabemos os desdobramentos desta teoria do valor e desta prática de acordos aqui sugeridas. Num primeiro momento, podemos vislumbrar que, no limite desta teoria, o endividamento excessivo devido a acordos deve produzir uma prática social indistinguível de uma economia de dádivas onde não há expectativa de retribuição direta ou o uso da dádiva como demonstração de poder311. No caso da pedagogia também podemos vislumbrar um ótimo uso da ajuda múltipla: pessoas que aprenderam algo podem ensinar para outras, multiplicando o conhecimento ao invés de sempre recorrerem aos luminares do saber.
Por outro lado, a existência e a propagação dos acordos pressupõem um grupo social pertencente a redes de relacionamentos afins, o que em certo sentido limita a aplicação da ajuda múltipla: e quem não participa da rede? E no caso de grupos em conflito interno?
Além disso, este texto propõe um exercício explicitamente contratualista. Sem entrar em detalhes sobre as vantagens e desvantagens desta abordagem, o pressuposto contratualista nos auxilia na modelagem de equações macroeconômicas básicas. Mas o contratualismo só se faria necessário na ausência da espontaneidade: quando está implícito, ou é espontâneo, que uma pessoa ajuda a outra, aí não há necessidade de contratos.
Estas são apenas sugestões de desdobramentos possíveis: convidamos todas as pessoas que queiram contribuir para a análise de regimes econômicos fora do mercado para que pensem conjuntamente no que aqui foi meramente delineado. A experimentação também é encorajada: sem ela, toda esta discussão não passa de uma teoria descolada dos grupos sociais.
References
Republicação, com mudanças e complementações, de texto em blog de 07/10/2018 a partir da versão original 1.0.0, de 26/06/2008. Este texto foi complementando este texto cerca de 16 anos depois de escrito, dada a importância e relevância do tema, assim como o benefício de anos adicionais de reflexão e vivência.↩︎
Notar que esta definição de ajuda múltipla não é necessariamente equivalente à de ajuda mútua utilizada em muitos estudos sobre economia da dádiva: em alguns deles, a ajuda mútua ocorre quando cada uma das partes envolvidas no acordo deve se ajudar reciprocamente, enquanto que na ajuda múltipla isso não é necessário. Não pretendemos neste texto sugerir a suposta superioridade do conceito de ajuda múltipla sobre a ajuda mútua. Muito pelo contrário: na falta de um devido estudo sobre a literatura existente, preferimos utilizar um termo distinto da ajuda ou apoio mútuo (mas que eventualmente possa ter o mesmo significado).↩︎
Os valores de \(v\) podem ser estipulados em cada acordo.↩︎
Por conservar valor não queremos dizer que a moeda não sofre valorização e desvalorização, mas sim que a moeda “congela” trabalho.↩︎
Começamos nossa somatória com \(p = 1\) pois, apesar de ser um caso em princípio bizarro (uma pessoa fazendo acordo consigo mesmo), não deixa de ser uma possibilidade: posso, por exemplo, fazer um acordo comigo mesmo e, caso o cumpra, ajudarei mais pessoas, sendo caso clássico disso é a solidariedade de ex-viciados, por exemplo. Outro argumento para manter \(p = 1\) é a simplicidade.↩︎
Poderíamos supor um sistema onde cada acordo tivesse uma viralidade \(v\) própria, mas a complexidade do cálculo seria desnecessária para esta primeira exposição do assunto.↩︎
Que fique bem explicado: \(r\) não inclui pessoas que não podem ajudar, mas apenas as que podem mas que ficaram de fora dos acordos.↩︎
Na época da primeira versão deste texto, usei o termo “ação coletiva” baseado no texto Castro (1992); não imaginava que havia toda uma discussão sobre o “problema” da ação coletiva dentro da economia.↩︎
Alternativamente, poderíamos definir o divisor como \(m^r\) ao invés de \(mr\), o que faria com que \(S\) fosse muito mais sensível à inclusão ou exclusão social. Optamos, no entanto, por uma abordagem em que \(m\) e \(r\) contribuem com igual teor.↩︎
Num sistema mais próximo da realidade teríamos trocentas outras variáveis.↩︎
O contrato hobbesiano é o que mais parece com o que Zuboff (2019) chama de “descontrato” (uncontract).↩︎
Lanço aqui um neologismo em princípio paradoxal e aparentemente contraditório, “anarco-estatismo”, a ser descrito em trabalho futuro, ou atualização futura deste texto, juntamente com a conceituação de Máquinas de Estado.↩︎
Cerca de três anos depois de escrever a versão original do texto, isto é, em 2011, comecei a programar uma “plataforma”, o Clube da Muamba, que seria apenas de empréstimos (e no futuro doações) de coisas… e que até poderia ser uma etapa para um sistema ulterior de anúncios de ajuda múltipla. Mas fiz sozinho e não dei conta da empreitada. Poucos anos depois, surgem as chamadas “plataformas” da “gig economy”. O Clube da Muamba nunca chegou a operar ou ter qualquer relevância, mas o fato dele e muitos outras iniciativas semelhantes antecederem as plataformas de precarização do trabalho pode ser um indicativo de que havia gente dos dois paradigmas investindo nisso.↩︎
Importante notar que as chamadas “plataformas” da “gig economy” basicamente operam como “murais” de anúncio entre pessoas que oferecem ou buscam um serviço, mas operando sob um regime inteiramente distinto da ajuda múltipla.↩︎
O uso da dádiva como demonstração de poder seria, por exemplo uma pessoa com mais recursos dar um presente a outra com menos recursos de forma que seja causado um vínculo de relação seja paternalista, humilhante, etc.↩︎